A LIVRARIA

A Livraria Espaço Livros e Artes têm fundamental importância na consolidação do prestigio que passa a ter o ESPAÇO IAB, o acervo de livros de arte e literatura nacionais e importados foram sua referência.

    Noites de autógrafos

  • Millôr Fernandes - Poemas
  • Martha Medeiros - STRIPTEASE
  • Maria Lúcia V. Dunlop – Personagem Possível
  • Mario Quintana – LP Antologia Poética

 

CONTOS & CRÔNICAS

Gilberto Perin - Lenda e timidez

Timidez e insegurança sempre me acompanhavam quando eu ia sozinho num bar, sem ter combinado com ninguém. Coisa pessoal e sem explicação objetiva.

Mas desde a primeira vez que fui ao Bar do Dirceu, no edifício do IAB, isso se modificou. Pelo menos nesse bar com muita luz, mesas e cadeiras simples. Eu me sentia à vontade. Talvez por me lembrar do mesmo espaço do Clube União de Guaporé, onde nasci e vivi até os 15 anos.

Parecia um bar comum e era. Porém, tinha a recepção familiar do Dirceu, Genésio, Flávio e equipe. Nas mesas, gente de todas as alas da cidade. Ah, tinha um espaço muito pequeno e encantado de uns três metros por dois. Nesse palco, aconteciam magias inesquecíveis e passaram lendas dos anos 1980.

Lembro a estreia do grupo Cem Modos, da Suíte Picnic que ouvi tantas vezes, show com Raul Ellwanger, estreia do “Tangos e Tragédias”, enfim, noites e conversas sem fim. Encontros desejados e surpreendentes, outros nem sempre pretendidos. O mundo girava na claridade de um espaço lendário.

Lembro que eu morava na Rua Lima e Silva, perto da Avenida Venâncio Aires, isso dá mais ou menos uns dois quilômetros até o bar. E eu fazia todas as noites a pé esse trajeto e voltava do mesmo jeito. Sim, teve um tempo que se podia fazer isso aqui em Porto Alegre.

Relembrar não quer dizer fidelidade com o tempo e o espaço, a exatidão não é amiga da memória, mas isso não importa. Quando estive no castelo de Hamlet em Helsingor, na Dinamarca, perguntei ao porteiro:
-Aqui é o castelo de Hamlet?
-Não, aqui não é o castelo de Hamlet, isso é uma lenda.
-Meu senhor, fiz mais de onze mil quilômetros pra chegar aqui e o senhor diz que Hamlet é uma lenda? Desculpe, mas eu “comprei” a lenda e é isso que quero ver.

Nós dois caímos na gargalhada. Ele, simbolicamente, me entregou a chave e me mostrou cada espaço do “castelo de Hamlet”. A mesma coisa penso do Bar do Dirceu, no IAB, cada frequentador tem a memória dele que faz parte da história individual e coletiva. Então, o que faz esse espaço transcender é exatamente a lenda e é esse reino que percorro com todas as imperfeições afetivas da minha lembrança.

Gilberto Perin

Graduado em Comunicação Social pela PUCRS, sempre atuou no meio audiovisual, seja como fotógrafo, roteirista ou diretor de cena.
Como fotógrafo faz exposições no Brasil e Exterior. Em 2019, expôs a série “Sem Identificação” em Lisboa (Portugal) e a série “Fake Photos” em Genebra (Suíça) e, em 2021, apresentou “Retratos” no viaduto da Borges de Medeiros, no centro de Porto Alegre.
No Museu do Futebol de São Paulo, apresentou “Vestiário” (2013), imagens dos bastidores de um clube de futebol da segunda divisão do Rio Grande do Sul.
Publicou dois livros de fotos: “Camisa Brasileira” (2011) e “Fotografias para Imaginar” (2015) e tem obras em museus, entidades culturais, galerias e coleções particulares.

Carlos Frederico B. Guazzelli - O nascimento do Espaço-IAB

A convite de meus amigos Antonio Carlos Castro e Elena Graeff, então casados, passei o réveillon de 1981 no topo do morro da Joaquina, em Florianópolis, num idílico chalé com vista plena para o mar e isolado do mundo.

Além de três amigas do casal, também arquitetas, veio de Curitiba um primo do Castro – o Dirceu Russi – com a Elaine, sua esposa à época, grávida da Maria Antônia, e os dois filhos pequenos – o Diego e o Lucas.

Pois foi ali, contemplando o mar-oceano e desfrutando das comidas e bebidas que carregamos pra cima do morro, que o Dirceu falou de seu plano: encerrar suas atividades na capital paranaense e retornar a Porto Alegre, para abrir um bar-restaurante. Nascia, ali, o Espaço-IAB, destinado a se tornar, ao longo da década que iniciava, um local icônico da vida cultural e boêmia da cidade.

A idéia foi ampliada: o Castro também pretendia instalar uma livraria de arte, voltada principalmente para obras sobre arquitetura e fotografia. O plano foi tomando corpo e, nos meses seguintes, começaram as negociações com a presidente da seção estadual do IAB, arquiteta Enilda Ribeiro, visando à locação de um espaço localizado no térreo do edifício do Instituto – onde já funcionara, algum tempo antes, o bar do músico Pernambuco.

Em nome da entidade, Enilda firmou em seguida dois contratos de locação comercial – um, com o Dirceu e a Elaine, para instalação do bar-restaurante, na parte mais ampla daquele espaço; e outro com o Castro, na parte menor, onde veio a funcionar a livraria. Estes dois contratos foram elaborados por mim, no escritório de advocacia em que então trabalhava, com meu pai. Como conhecia as partes, fui escolhido para a tarefa, e procurei dar forma jurídica aos acordos entre elas estabelecidos.

Hoje, passadas mais de quatro décadas dos fatos acima relatados, posso expressar meu orgulho por ter sido testemunha presencial do nascimento desse lugar tão especial – ainda vivo na memória de artistas, boêmios, estudantes e profissionais liberais que o freqüentaram; e também por ter sido seu padrinho jurídico, por assim dizer.

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli

Dulce Helfer - Luis Fernando Verissimo - O Homem de Muitos Talentos

Não sei ao certo a primeira vez que fotografei Verissimo. Acredito que tenha sido entre 85/86. Desde minha adolescência, era leitora voraz dele e super admirava a elegância com conteúdo em suas crônicas e seu humor.

Apesar da ironia fina com que trata as palavras, o texto nunca é hermético. Ler Luis Fernando, além do prazer, é uma aula de cultura que só se aprende com quem realmente sabe o que fala, ou no caso, escreve. Nada rebuscado e com a fluência de causar inveja a muitos escritores que procuram palavras em dicionários e nos cansam com seu diletantismo. Como se não bastasse ser o grande escritor que é, ainda surpreende com o traço preciso e sintético nos seus desenhos e cartuns, como- A família Brasil, As Cobras, Ed Mort e tantos outros personagens que nos divertiram com seu sarcasmo e inteligência, sem nunca cair na mediocridade.

Mas aí, descobri o grande músico de jazz, que ele é. Escutar Luis Fernando tocando seu sax, como se fizesse isso o dia todo, me deslumbrou definitivamente pela incrível pessoa que nasceu com os maiores dons. Com tantos talentos, Luis Fernando poderia ser um ególatra. Mas assim como a Lucia Helena, sua mulher, a simplicidade e humanidade é o que torna essa família tão especial.

Por isso, quando fui convidada a expor na Galeria de Arte virtual do site Annes Dias 166, Tributo ao Bar do IAB ao invés da sugestão de fazer uma mostra com minhas fotos de grandes músicos, e são centenas de shows que fotografei, preferi homenagear a verdadeira Família Verissimo. Essa que tenho o privilégio de ter como amiga há tantos anos. O DNA desse casal tão admirável, também está nos filhos. Então posso ficar babando descaradamente minha admiração e carinho por todos eles aqui e agora. Sempre é bom poder dizer a quem se gosta, a importância que tem na nossa vida. E apesar de saberem disso há muito tempo, é com as imagens que consigo fazer a homenagem à família e ao Luis Fernando, esse escritor de muitos talentos sem avatares ou cópias por aí.

Viva Verissimo!

Dulce Helfer - fotógrafa

Fatima Torri - Uma utopia com 40 anos de idade

Dizem que os anos 1980 foram a década perdida, mas confesso que nem nos apercebíamos disso. Para nós, da “Turma de Santa Maria”, aquela foi, na verdade, uma época fervilhante, revolucionária, mágica.

E a magia tinha endereço: estava à nossa disposição, todas as noites, no primeiro andar de um prédio da Rua Annes Dias, em frente à Santa Casa, no Centro de Porto Alegre.

Era ali que funcionava o Bar do IAB, aberto em dezembro de 1981 para servir de refúgio aos sonhos de glória, paixão e liberdade de uma geração de intelectuais e artistas que começava a tatear seu lugar no cosmos.

Sim, tinha endereço o Bar do IAB, mas não era exatamente um lugar no espaço e no tempo, era muito mais do que isso, pelo menos para nós: representava uma utopia, uma ansiada sociedade alternativa.

E o homem por trás disso, vejam só, era um ex-gerente de banco, com experiência no mercado financeiro e na administração de cartões de crédito. Sabe-se lá por que, esse indivíduo, Dirceu Russi, resolveu aposentar o terno e a gravata para dedicar-se à muito mais nobre missão de mudar para sempre a noite de Porto Alegre — e de nos transformar no decorrer dessa aventura. Detrás do balcão ou circulando entre as mesas, ele era uma espécie de guru indiano, exalando a serenidade de um Mahatma Gandhi ou de uma Madre Teresa de Calcutá, enquanto nós realizávamos (ou imaginávamos realizar) milhares de revoluções por minuto.

Dirceu mantinha a fidalguia mesmo em meio às mais acaloradas discussões, quando os ânimos se exaltavam pelo embate de ideias em chamas ou quando casais nem tão consolidados expunham seus ciúmes e fragilidades. Uma vez, um garçom que havia sido mandado embora dias antes (por beber mais cervejas do que aquelas que conseguia servir) apareceu com um revólver para se vingar. Apesar da arma carregada apontada em sua direção, Dirceu se manteve impassível, convenceu o garçom a abortar os planos homicidas e ainda o defendeu, quando os policiais chegaram.

Esse era Dirceu, dono do bar, da noite, das nossas vidas.

As vidas em questão eram de uma turma que havia se formado no interior do estado, na década anterior, e que agora desbravava a Capital. Apesar de nos referirmos a nós mesmos como “Turma de Santa Maria”, o grupo reunia gente de todo o Rio Grande do Sul e até de fora do estado. Por que não dizer? Sim, a turma de Santa Maria era internacional. Contávamos até com uma castelhana, a Susana Terra! Dentro da tribo, eu formava um trio à parte, junto com Susana e com outra grande amiga, a Gisele Porto. Uma era comunista. A outra, livre, leve e solta, apesar de filha de militar.

O Bar do IAB foi o espaço do desabrochar comportamental dessa turma. Cenário de nossos primeiros amores, do início da vida adulta, dos primeiros empregos, da esperança de dias melhores. Não digo que era a nossa segunda casa, porque muitas vezes era a primeira. Ali tínhamos uma família de sonhos. Amigos. Desejos confessos e, outros, nem pensar. Quer dizer, pensar, sim. E realizar alguns.

Acreditávamos que seríamos grandes, enormes. Tínhamos certeza de que éramos eternos. E, sem dúvida, iríamos salvar o mundo, porque tínhamos respostas para tudo. Sonhávamos um novo jeito de ser, livre e desinibido. Falávamos com aprovação dos relacionamentos abertos, por exemplo, mas tínhamos consciência, no fundo, de que a prática ainda era aceitável só para os homens, principalmente se fossem representantes dos altos escalões revolucionários de então. Aí, podia.

Por falar em revolucionários, o Bar do IAB foi também o espaço do nosso desabrochar político. Farejávamos a mudança no ar, apesar do ambiente carregado pelo cheiro de fumaça de cigarro, de óleo de cozinha e de cerveja derramada. Depois de duas décadas de regime militar, os jornais estampavam na capa as fotos de multidões exigindo votar para presidente. O clima era de vira, virou. E acreditávamos, com ingenuidade talvez, nas Diretas Já (tragicamente derrotadas pelo Congresso em 1984) e na volta da democracia, que limparia o ar pesado e rarefeito com ventos de transformação.

Hippies tardios, divididos entre a turma odara, as feministas e os hard politics no topo da pirâmide (afinal, eles discutiam o “18 de Brumário” de Marx e denunciavam o imperialismo cultural capitalista desnudado por “Para ler o Pato Donald), nem por isso deixávamos de nos unir em torno da comida maravilhosa e da cerveja estupidamente gelada.

Muitas vezes, reconheço, a política era discutida com altos graus de delírio e alucinação. Uma ocasião, nosso amigo Breno, na madrugada pós-canja, avistou um caminhão de lixo do DMLU e sentenciou: não são garis, são uma dissidência da Libelu (o movimento Liberdade e Luta, uma organização trotskista universitária que marcou a época). Enxergávamos a revolução assim próxima, na volta da esquina.

O Bar do IAB foi, ainda, o espaço do nosso desabrochar cultural. Ali se reuniam, se não as melhores, pelo menos as mais interessantes e efervescentes cabeças da época. Para o bar confluíam jornalistas, cartunistas, músicos, estudantes, gente do cinema e arquitetos, claro, afinal era o prédio do Instituto dos Arquitetos do Brasil. O Instituto de Artes e o Centro de Arte Dramática da UFRGS estavam a poucos metros de distância, o que significava inundações periódicas de artistas plásticos, dançarinos, atores, encenadores, cenógrafos. Até Paulinho da Viola apareceu de surpresa, em um fim de tarde qualquer, dizendo que havia marcado uma entrevista no bar, e só foi embora altas horas da noite, depois de fumar vários charutos e jogar muita conversa fora com Dirceu.

Aquele lugar fez com que nos abríssemos para o universo da cultura porque, mais do que um simples bar, era uma livraria, uma galeria de artes, um teatro e uma casa de shows, tudo junto misturado. O espaço inaugurou com uma exposição de Luiz Carlos Felizardo, teve lançamento de livro de Millôr Fernandes e de disco de Mario Quintana, abrigou as primeiras apresentações do mítico Tangos & Tragédias (da dupla Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky) e virou uma espécie de lar para o Grupo de Bonecos 100 Modos. Tocaram lá Cida Moreira, Raul Ellwanger, Nei Lisboa, Augustinho Licks, Rosinha de Valença, Geraldo Flach, Celso Loureiro Chaves e Ayres Potoff. Não esqueço da noite em que Nana Caymmi cantou a menina dos olhos que me “sorri e estende a mão”. Era tanta gente, do lado de dentro e de fora, que Dirceu quase perdeu a sua calma proverbial. Não queria deixar entrar mais ninguém, mas Nana insistia: “As pessoas têm de ver, têm de entrar”. Ele se convenceu.

Quando não havia apresentações ao vivo, era bom do mesmo jeito. Recebíamos o melhor do jazz como trilha sonora, cortesia do DJ Breno Ribeiro, responsável por uma noite memorável para mim, quando pôs para tocar uma fita cassete que continha a música do filme Blue Velvet, de David Lynch, a grande sensação em cartaz na cidade.

No Bar do IAB, víamos a “banda passar”, embarcávamos nos devaneios líricos de Caetano, sentíamos na alma a voz funda de Gil, sonhávamos com Gal nos dizendo “você precisa saber da piscina, da margarina”. E sabíamos, sim! Cultos que éramos (ah, como nos achávamos cultos), estávamos a par da existência da cantora Chavela Vargas, paixão do Jairo, e recitávamos os latinos-americanos Carlos Fuentes, Vargas Llosa e García Márquez. Em cinema, era proibido gostar do careta Ingmar Bergman e de seus “Gritos e Sussurros”. Revolucionário era apreciar a hiper-realidade de Fellini. Víamos filmes supercult e cool, como “O joelho de Claire”. Ininteligível. Mas fingíamos entender, claro.

A cultura que se respirava no bar nos deixava mais bonitos, inteligentes e seguros.

Embora, na realidade, houvessem muitos grilos e inseguranças. Dizíamos que o Bar do IAB era o Palácio da Loucura, porque pelos andares do prédio proliferavam os consultórios de psicanalistas. Muitos pacientes saíam direto das sessões de terapia para as mesas do bar, onde digeriam os 50 minutos de divã entre copos e amigos. E nessas ocasiões Dirceu era nosso outro terapeuta, nosso pai emprestado. Se existia um Deus, Dirceu estava sentado à direita Dele — e nos havia escolhido.

Lembro sempre da noite em que nossas conversas incendiárias sobre comportamento, política e cultura foram tão acesas que se prolongaram até horas inimagináveis. Rommel Simões, um dos integrantes da turma, insurgiu-se, surrupiou a chave do bar, nos trancou lá dentro e foi embora. Como saímos? Não faço a menor ideia.

Só sei que às vezes penso como seria bom se continuássemos trancafiados naquele sonho.

Lelei Teixeira - Um oásis no centro de Porto Alegre

Porto Alegre, começo dos anos 1980. Época de muito trabalho, pouco dinheiro e uma vontade imensa de curtir a vida. Um bar inaugura no térreo de um prédio localizado na Rua Professor Annes Dias, pertíssimo da Praça Dom Feliciano e da Avenida Salgado Filho.

Eu morava no bairro Auxiliadora e passava por ali diariamente. Era um dos meus caminhos para a labuta cotidiana. Então, acompanhei um pouco da movimentação, especialmente no final da tarde, em direção à parada do ônibus que me levava de volta para casa. Dava uma espiada no local cheia de vontade de sentar em uma mesa, tomar uma água, um café, bater um papo. Conversa daqui, conversa dali, descobri que era o Bar do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), que tinha um pequeno palco e, quem sabe, logo, uma proposta para shows. E assim foi!

Vivíamos um momento muito duro no Brasil – uma ditadura militar que torturou e matou muita gente – pessoas conhecidas desapareciam de uma hora para outra. E o silêncio era assustador. Ali Marlene, minha irmã, e eu nos sentíamos acolhidas. E levamos muitos amigos juntos.

Ali curtimos O Menor Espetáculo da Terra do Teatro de Bonecos Cem Modos, o que bastou para o encantamento. Virei fã e frequentadora. Ali vimos o primeiro espetáculo do Nico Nicolaiewsky e do Hique Gomez – Tangos e Tragédias – e foi pura emoção. Ali vimos Cida Moreyra, Nei Lisboa, Antônio Carlos Falcão e sua Maria Bethânia e tantos outros. Ali convivemos de perto com o movimento cultural e artístico de Porto Alegre. Ali dividimos alegrias, inquietações pessoais, profissionais, políticas e sociais com os amigos.

Depois, passei a frequentar a Livraria. No Espaço Livros & Artes, vi uma exposição de fotos sobre as Diretas Já (30 de maio de 1984). Eu gostava de conferir os livros nas estantes, folhear alguns, encher meus olhos com tantas provocações. Impossível esquecer de um sobre o Torquato Neto que me encantou e virou sonho de consumo. Estava sem dinheiro, mas anotei na minha agenda – “ainda volto no IAB para comprá-lo”. E voltei no dia 14 de setembro do mesmo ano e comprei no crediário – “Torquato Neto Os Últimos Dias de Paupéria” (Núcleo de Atualidades, Editora Max Limonad Ltda, 1982), que tenho até hoje. E o livro do Toninho Neto, que comprei e não fui pegar o autógrafo por pura timidez!

Havia uma cumplicidade bonita naquele ambiente que me fazia muito bem! Dirceu Russi pode se orgulhar de ter proporcionado momentos incríveis para tanta gente!

Lelei Teixeira.

Luis Elói Stein - Por detrás do balcão

Numa noite, lá por abril de 1982, estava eu, junto ao balcão do IAB bebendo uma cerveja, como era de praxe àquela hora, qualquer que fosse o dia, e deliciando-me com os comentários que o Dirceu (um dono de bar de outros tempos!) tecia sobre um LP de Miles Davis recém-chegado, do qual ele se esmerava em limpar as inexistentes partículas de sujeira de cada faixa com um paninho imaculado.

Era assim, primeiro a história, os detalhes da gravação, os músicos, a capa, e o mesmo com as fitas cassetes que alguns amigos lhe gravavam, queria saber tudo. As músicas em geral, o Jazz em particular, ali precisavam ser desvendados, para então serem vividos na essência. Eu ia ouvindo e aprendendo e… bebendo. Já estava acabando a minha segunda cerveja, quando o disco começou a rodar, deslizavam os acordes entre as faixas que dançavam maciamente na minha cabeça. Em seguida, enquanto o Dirceu reunia as comandas de uma mesa que pedira a conta, sem se distrair da calculadora e sem levantar a cabeça, de repente me questionou:
“Segóbia, tu não preferes beber cerveja sentado do lado de cá do balcão?”
Apanhado de surpresa e sem entender muito bem aquilo, demorei-me no copo e então respondi, perguntando:
“Aí atrás, Dirceu? E pra fazer o quê?”
Soltando então uma farta baforada do seu charuto, inseparável àquela hora, respondeu-me, quase distraidamente:
“Pra cuidar destas comandas aqui e virar o disco cada vez que acaba a música...”.
Então, meio sem jeito, coçando a minha reles barba, ainda preta na época, e sem saber bem o que dizer, revidei:
“E quanto ao pagamento?”
Então Sô D’cêu, servindo-se de um Domecq a pedido do seu charuto, olhando-me por cima dos óculos, sentenciou:
“Olha, não posso te pagar lá grande coisa, mas a tua consumação é livre, pelo menos enquanto ficares aqui e o bar estiver aberto!”.
E saindo de trás do balcão foi cumprimentar um pessoal que acabava de chegar. Ainda se virou pra mim e completou:
“Ah, e o bar aqui só fecha quando sai o último cliente!”
E jogou-me a chave do bar, indo abraçar efusivamente os seus convidados…, enquanto um melódico trompete me insinuava o lado B e eu disfarçava a minha incontida emoção.

E lá de dentro, um sorridente Genésio já me sugeria:
“Marca aí, meu parente, mais uma cerveja na mesa 8, e uma caipirinha na 5”
e acrescentou lá pra cozinha:
“Dona Ercília, mais uma porção de bolinhos de queijo e um filé xadrez, pro casal da mesa 4!”.
E o Flávio:
“Segóbia, sabe se é uma caipira de cachaça ou de vodka?”.
E assim foi a primeira entrevista que fiz pra trabalhar num bar, ou melhor, pra viver num bar aqueles dois anos intensos e inesquecíveis que marcaram a minha modesta e sonhada boemia…!

Pois é Dirceu, lembrei bem disso, tempos depois quando, já morando em Roma, eu esperava, por uma vaga de professor que me haviam prometido, mas que parecia então impossível, e assim, depois de muito procurar acabei encontrando trabalho numa cafeteria. O pagamento seria em dinheiro, vivo! Mas não se podia beber cerveja e tampouco havia música no bar…! No fim não me quiseram, sabe lá por quê... Talvez tenha sido melhor assim, pois se liberava a tal vaga de professor na semana seguinte, onde me mantenho até hoje.

Ainda continuo a gostar de cerveja e curtindo a boa música, mas bar como o nosso Espaço-IAB, nunca mais!

Obrigado, meu amigo.

Luís Elói Stein.

Luiz Carlos Felizardo

Nasci a uma quadra da Praça da Matriz. 32 anos depois, fiz uma exposição de fotografias que inaugurou o Espaço IAB, com o título, meio barroco – como homenagem ao Júlio Curtis – de “Algumas tentativas de reunir em imagens três décadas de relacionamento afetivo com o centro da cidade de Porto Alegre”.

O título e a exposição espelhavam bem o que eu pretendia e o que minha fotografia viria a ser: sempre sobre lugares pouco reconhecíveis, privilegiando aqueles que poderiam ser identificados como “simbólicos de si mesmos”.

O Espaço IAB constava de um bar com um palquinho e uma pequena livraria, a Espaço Livros & Artes, onde eu encontrei mais tarde, e me dei de presente Monuments of the Incas, de Edward Ranney e John Hemming, um livro excepcional sobre a arquitetura inca, que foi de extrema importância para mim e minha fotografia. Anos depois, numa viagem pelo oeste americano – o “velho oeste” –, eu viria a conhecer o Ed, que morava perto de Santa Fe, Novo México, numa fazendola, onde eu manuseei, maravilhado, as fotografias que haviam composto a exposição do MoMA com obras de Martín Chambi, a quem o Ed descobrira numa viagem a Cuzco, e por cuja apresentação ao mundo seria responsável.

O Bar do IAB, ¬marcou época em Porto Alegre, pela excelência de seus drinques e sua comida, esta a cargo da Elaine Pohlmann, e de Dirceu Russi, fundador do Espaço (junto com o Castro, seu amigo) e pelo atendimento inesquecível dos garçons Genésio e Flávio. Foi a primeira experiência do Dirceu naquilo que viria a ser sua grande especialidade, a criação de bares especiais –Bogart, Bere & Ballare, Metrópolis, entre outros. Quanto ao palquinho, basta dizer que foi ali que tiveram início o hoje consagrado Tangos e Tragédias e os Cem Modos, um maravilhoso espetáculo com bonecos, manipulados por Luiz Ferré, Beto Dornelles e Pedro Girardello. Nana Caymmi e Rosinha de Valença também tocaram lá, além de Celso Loureiro Chaves, Ayres Pothoff, Bebeto Mohr e Clóvis Boca Freirecom a Suíte Pic-Nic de Claude Bolling e depois com a Silvana Scarincina Suíte para Violão e Piano.

O fato de eu ter feito a exposição que inaugurou o Espaço IAB acabou sendo, portanto, uma honra que, na época, eu, honestamente, não previa. Cá entre nós, falha minha. Afinal o lugar, além de bonito e bem localizado (nos altos da Rua da Praia, defronte à Santa Casa), foi um ponto de notáveis encontros e um centro cultural riquíssimo.

Uma das obras expostas, talvez a mais reconhecível delas, a do hotel Majestic, foi vendida para o advogado Antônio Pinheiro Machado Neto, pai de um ex-colega meu, José Antônio e do Ivan, da L&PM. Olha só: até vender, vendi. Além do Majestic, tinha cadeiras de engraxate, garagens, caminhões, placas de estacionamento, fucas, tudo anônimo, bem coerente com o que eu viria a fazer no futuro próximo. Ou, mesmo, distante, já que continuo, até hoje, expondo essas mesmas fotografias.

Foi, por tudo isso, uma bela experiência.

Marcelo Sirangelo - Para o IAB com escala em Asunción do Paraguai!

O ano era 1984. Cheguei em Porto Alegre depois de uma aventura de quase um ano na Europa, onde circulei por países de mochila nas costas, me apropriando de bicicletas em vielas rurais da Suíça, trabalhando em colheitas em troca de pão e vinho, uma espécie de anarquista juvenil vivendo de bicos.

Um tipo de aventura que encarávamos naquela época, sem cartão de crédito ou passagem de volta. Cheguei num voo da TAP, o mais barato que consegui, com escala em Asunción del Paraguay. Um baque tremendo. Tenho que confessar. E depois de alguns dias de ressaca em São Paulo, a visão desanimadora da rodoviária de Porto Alegre.

Já desembarquei na cidade interessado em rever a amiga que paquerava sem sucesso nos corredores da faculdade antes de trancar a matrícula do jornalismo e sumir do país a bordo de um cargueiro norueguês, rumo à Antuérpia. Estava duro. Havia torrado todas as economias que fiz em empregos que prefiro não incluir no currículo, nos meses em que morei em Londres, flanando por Suíça, França, Marrocos, Portugal e Espanha. Valeu a pena! O namoro finalmente deu certo e eu só pensava em comprar uma TV em cores para assistirmos juntos o programa do Jô - ainda no SBT - no pequeno JK da João Alfredo. A televisão, em preto e branco, era minúscula e tinha problemas de imagem. O vertical vivia desajustado.

É aí que o Dirceu Russi e o icônico Espaço IAB entram nessa história. Não me lembro bem quem fez a ponte, mas o fato é que o Dirceu me convidou para trabalhar no balcão do bar. Depois de encarar a máquina de lavar louças de uma espelunca fake mexicana em Covent Garden, e de preparar saladas de frutas num restaurante grego, em Bayswater, onde todo e qualquer funcionário brasileiro era chamado de Antônio pelo dono, um legitimo feio, sujo e malvado, achei aquela ideia uma maravilha. Foi o jeito de garantir uns cruzeiros no fim do mês. Topei na hora.

O IAB, na verdade, era um mistério para mim. Território da turma dos irmãos mais velhos. E foi amor à primeira vista. No tempo em que estive atrás daquele balcão, uma antessala do bar, presenciei um vai e vem incessante de boêmios e protagonistas da vida cultural de Porto Alegre. Gente de teatro, cinema, músicos, fotógrafos, arquitetos, cartunistas, escritores, figuras carimbadas da noite, alguns chatos incuráveis, mulheres de fechar o comércio, existencialistas embriagados ou chapados, envoltos em cachecóis, recitando poesias nas madrugadas frias e solitárias, os cotovelos grudados no balcão. De longe, observava o que acontecia nas mesas que fervilhavam numa intensa dança de cadeiras, ideias, projetos, sonhos, com a bandeja do garçom Genésio descarregando litros de cerveja, irrigando os embates político-filosóficos sobre literatura, cinema e, claro, o fim da ditadura. Uma atmosfera enfumaçada e democrática antes da democracia e da proibição do cigarro nos bares.

O IAB também tinha a livraria, na entrada, e um palco com pocket shows, como o impressionante Cem Modos e o longevo Tangos e Tragédias, atrações de uma Porto Alegre que não sai de mim. Deixei a cidade em 1987 e nunca mais voltei, como morador. Mas perdi as contas de quantos voos da Varig me levaram de São Paulo até o velho Salgado Filho em busca do afeto familiar, das costelas mingas e da velha boemia da micrópole - como bem definiu o genial artista Alemão Guazzelli, um grande amigo que traduz o espírito do IAB.

Ainda teve uma pós-graduação no Zelig (que belo nome para um bar!), o braço do IAB na Cidade Baixa. Mas essa é outra história. E preciso dizer que Dirceu, Elaine e o gerente César eram patrões queridos e generosos. E me ajudaram a seguir em frente.

Faltou dizer que a TV colorida foi só um sonho. Gastei o que ganhava nas madrugadas malditas da mesma Cidade Baixa. O certo é que os dias em que estive nos dois lados do balcão do IAB são inesquecíveis, assim como Porto Alegre.

Marcelo Sirangelo - jornalista

Maria Helena Weber - Inebriados Afetos de Bar

O desafio é falar pouco sobre o Espaço IAB. Escolho, então, um canto.
Apesar do nome, nenhuma arquitetura especial justificava os acontecimentos e afetos provocados por aquele espaço.

Um pouco de bar, restaurante e livraria faziam a mágica que nos atraía, Nem todos se conheciam, mas todos se esperavam por ali. O lugar não tinha a sofisticação do Plaza, nem a magia da esquina maldita, mas era o lugar de interessantes e malditos professores, jornalistas, publicitários, artistas e até arquitetos. A bebida, a comida e a música do IAB viciavam e ali era o destino certo para inícios e finais de noite; para encontrar amigos e amigas, e até namorar. Muitos amores aconteceram, boas traições e reencontros. Nas mesas principais muitos sabiam de tudo, mas disfarçavam. Ali, insólitos encontros se faziam, mas a discrição rolava, até que alguém resvalasse num comentário ferino ou pergunta descabida, dependendo da embriaguez. Depois das festas da cidade, das aulas, dos shows, ali nos achávamos.

O lugar era para iniciados especialmente aqueles ávidos de novos saberes e acontecimentos e as mesas seguravam a saliva das tantas palavras que iriam mudar o mundo. Ao redor das mesas e cadeiras, nem tão confortáveis, nos espalhávamos, dissecávamos rótulos, títulos, filmes, escritores, moralidades e rupturas, imaginando a volta da democracia ao país. A política era o tema sempre presente, porque já vivíamos a liberdade de poder falar tudo. Experimentávamos a sensação única de não sentir o medo à espreita. Brindávamos à liberdade prometida que expulsava a censura e não mais controlaria nossos artistas, atores, músicos, escritores, professores.

Sentados na pequena escada (de tantos tombos), à mesa, encostados no balcão, nas paredes, folheando os livros e revistas, nos fazíamos amigos. O teor alcóolico nos tornava ousados e revirávamos a intimidade dos inimigos, enquanto elegíamos nossas deusas e semideuses. Discordar era imperativo e furiosos embates aconteciam. Mas, no dia seguinte, depois da ressaca, voltávamos para saborear a boa refeição da Elaine, qualquer bebida para celebrar acordos de paz e desculpas. Com os amigos e amigas do IAB forjamos belos e utópicos projetos, criamos historias, poesia e músicas, mesmo sem ter alguma vida em comum, fora daquele espaço. Foi assim que todos se empenharam e aconteceu o memorável show de Nana Caymmi e Rosinha de Valença, no palquinho. Coube a mim, hospedá-las e este é um dos grandes presentes trazidos daquele tempo, além de algumas fantasmagóricas lembranças amorosas que chegam com a música.

Maria Helena Weber, 25 de outubro de 2021.

Zé Victor Castiel

Vivi intensamente a noite de Porto Alegre nos anos 1980, principalmente num local pelo qual até hoje nutro enorme carinho: o Bar do IAB. Local que recebia diariamente um sem-número de artistas, boêmios, arquitetos, políticos e quem mais quisesse chegar.

Com um formato simples que misturava o discreto com o elegante, um cardápio que mesclava alguns pratos com quitutes de boteco, dois garçons lendários (Flávio e Genésio) e uma charmosa livraria, o proprietário, Dirceu Russi, conseguiu que o lugar fosse parada obrigatória para quem quisesse se divertir com certa erudição ou ser erudito com certa galhofa.

Foi uma época muito rica para as artes de Porto Alegre. Os elencos de teatro ao término dos ensaios dos espetáculos, os grandes cartunistas da cidade, os músicos mais queridos, os publicitários de raiz e figuras carimbadas da cidade para lá convergiam quase que por obrigação. Havia também um pequeno palco, que se tornava enorme em algumas ocasiões, como quando se apresentou pela primeira vez um espetáculo chamado Tangos & Tragédias.

Quis o destino que, ao ser anunciado o fechamento do bar, já no início dos anos 1990, eu fizesse o seu último espetáculo. Foi um stand-up cujo nome era Conversa ao Pé do Palco. Ali eu conheci muitas pessoas que, hoje constato, foram fundamentais na minha formação como artista e cidadão. No Bar do IAB conheci o grande e sempre melhor DJ de Porto Alegre, Claudinho Pereira; os enormes artistas gráficos Santiago e Edgar Vasquez; publicitários fantásticos como Jesus Iglesias e Roberto Filomena e tantos outros que, se aqui fosse elencar, ficaria dois dias teclando. O Bar do IAB era um lugar tão obrigatório que possuía até um relógio de ponto. Chegávamos e batíamos o cartão, o que evitava ficar perguntando aos garçons se fulano ou beltrano estava ou estivera lá.

Este lugar foi testemunha de milhares de ideias etílicas geniais, que se transformavam em devaneios no dia seguinte.

Não vejo mais possibilidade de se reeditar um bar com todo esse poder. E digo isso por dois motivos: o primeiro é que a discussão acalorada saiu dos botecos e bandeou-se para as redes sociais, deixando de ser argumentativa e passando a ser, não raro, ofensiva e difamatória; o segundo é que não se considera mais as mulheres e os homens da cultura como seres preparados para modificarem o mundo com suas ideias, mas pessoas perigosas que cometem o pecado de fazerem pensar.

Que pena! No Brasil dividido de hoje, em que lidar com o lúdico e o abstrato tende a dar lugar à palavra escrita e, portanto, impositiva, a criatividade acaba ficando supérflua, e a cultura, aí sim, vira um ''pum de palhaço''.

Zero Hora, 12 de março de 2020.


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